Escavações e análise forense buscam vestígios da repressão e da resistência no DOI-Codi em São Paulo

Material encontrado será abrigado pela Unicamp; investigação envolve entrevistas com mais de 100 sobreviventes
Pátio do DOI-Codi; investigação busca vestígios da repressão e da resistência no DOI-Codi em São Paulo (Foto: Sergio Sade/Editora Abril)

Sequestrado, encapuzado, preso e submetido a uma sessão de tortura em 1969, Virgílio Gomes da Silva, na época com 36 anos, é considerado um dos primeiros desaparecidos políticos da ditadura. Ele foi uma entre as mais de 50 pessoas assassinadas nas instalações do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) de São Paulo. Até hoje, seu corpo não foi encontrado. Para analisar o local onde ocorreram este e outros milhares de crimes, teve início, em agosto, uma investigação forense e arqueológica nas instalações do DOI-Codi. Entrevistas com ex-presos também estão sendo realizadas e serão um guia para a pesquisa. A estimativa é que sejam ouvidos mais de 100 sobreviventes. Após os estudos, o prédio deverá se tornar um memorial.

 

O DOI-Codi foi criado em 1969, por meio de uma parceria entre o Exército e a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, sob o nome de Operação Bandeirante (Oban). Era um órgão clandestino, que reunia agentes da Polícia Civil, Polícia Militar, Marinha, Aeronáutica e Exército. Em 1970, ele foi oficializado sob o nome de DOI-Codi e se incorporou à estrutura do Exército. Estima-se que mais de 7 mil pessoas tenham sido torturadas nas instalações.

 

“Lá, trabalhavam principalmente com a inteligência para identificar possíveis opositores e se antecipar às ações da esquerda. Eles consideram que tiveram muito ‘êxito’ na missão de investigação prévia, captura, tortura e assassinato de seus opositores”, diz Deborah Neves, historiadora e técnica da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo (UPPH).

audiodescrição: fotografia colorida da historiadora Deborah Neves
Investigação arqueológica deve “possibilitar a descoberta de elementos físicos e comprobatórios da violência e da violação de direitos”, afirma Deborah Neves (Foto: Larissa Melo)

Para ela, “é importante que os lugares usados pelo sistema de repressão tenham uma investigação arqueológica e forense, porque são locais onde crimes foram cometidos. Não importa quanto tempo tenha passado”.

 

O projeto integra um conjunto de ações para a preservação do patrimônio e a recuperação da memória sobre o DOI-Codi, que compreende um complexo de cinco prédios com entrada pela Rua Tutóia, na capital. “O trabalho de pesquisa, que iniciou em 2010 com a iniciativa da sociedade civil de pedir o tombamento e que agora tem o grande projeto de arqueologia pública, vem trazer substância à memória sobre o DOI-Codi, que é um órgão que ainda conhecemos muito pouco”, conta Neves.


A investigação, cujos trabalhos forenses já começaram, também deve “possibilitar a descoberta de elementos físicos e comprobatórios da violência e da violação de direitos”, aponta a historiadora. É possível, por exemplo, encontrar vestígios de sangue e material genético, o que pode desvelar os assassinatos de vítimas cujos corpos nunca foram encontrados. Inscrições nas paredes e bilhetes escondidos pelas vítimas também são materiais que podem ser encontrados. 

 

Memória, verdade, justiça

A ditadura civil-militar teve início com um golpe em 1964 e se estendeu até 1985. A Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em 2011 para apurar os crimes do regime, levantou 9 mil assassinatos ocorridos no período, dos quais 8,3 mil foram de indígenas. Resgatar a memória do que ocorreu no regime é importante para afastar o negacionismo e inverdades em relação à ditadura.

 

“O trabalho da CNV teve um papel importante na difusão pública do que foi a ditadura, da sua dimensão e capilaridade na sociedade. Precisamos pontuar que essa foi uma ditadura civil-militar, já que diversos empresários a financiaram e se beneficiaram dela. O que vemos agora, nesse momento de ascensão da extrema-direita, remonta a isso. Por isso, é importante que a gente trate a ditadura como um movimento de extrema-direita que tem continuidade ao longo da democracia”, diz Neves.

 

A justiça de transição pauta o direito à memória, à verdade e à justiça. Neste último ponto, analisa a historiadora, o Brasil caminhou pouco. “O que temos aqui é ausência de justiça e, por isso, a nossa democracia seguidamente é ameaçada. Para que essa sociedade, que foi fraturada por uma ditadura, se constitua em uma democracia, é necessário que o processo de justiça de transição trabalhe com a memória, permitindo conhecer o passado e construir a verdade sobre o período. E, com base na memória e na verdade, avançar na justiça. Das ditaduras latino-americanas, o Brasil é o país em que a justiça menos avançou”, avalia.

audiodescrição: fotografia preto e branco de manifestants, sentados, segurando um cartaz com as inscrições "onde estão nossos desaparecidos"
Manifestação de familiares de vítimas no DOI-Codi; preservação do patrimônio e busca pela verdade é uma forma de reparação aos familiares de vítimas e aos sobreviventes da repressão (foto: Oswaldo Santos-Junior)

Um dos impeditivos para isso foi o fato de a Lei da Anistia, que concedeu perdão aos presos e condenados políticos, também ter anistiado os agentes do Estado que cometeram crimes. Dessa forma, eles nunca responderam pelas violações praticadas no período. 

 

Neves ressalta que o projeto de preservação e de investigação do DOI-Codi caminha no sentido da recuperação da memória e da busca pela verdade. Responsável pelos pareceres técnicos que embasaram o tombamento do complexo do DOI-Codi de São Paulo, aprovado em 2014, a servidora da UPPH explica que a conservação e a investigação do local contribuem para uma melhor compreensão do sistema de repressão da ditadura. 

 

“Estamos falando de construções ordinárias do ponto de vista arquitetônico, mas que têm uma importância indispensável para compreender o sistema de repressão brasileiro. Ali nasceu o DOI-Codi, que depois se espalhou por outras nove capitais do país e estruturou todo o sistema de vigilância, perseguição, tortura e morte do regime”, explica.

 

O pedido de tombamento do local foi realizado em 2010 pelo ex-preso político Ivan Seixas, que, aos 16 anos, foi levado para o DOI-Codi junto com o pai, Joaquim. Eles foram torturados lado a lado. Mãe e irmãs, também presas e levadas à sede do órgão, foram torturadas e presenciaram o assassinato de Joaquim. Uma delas ainda sofreu violência sexual pelos torturadores. 

 

Junto à investigação arqueológica no local em que aconteceram violências como essas, o tombamento, que contou com votos das professoras Cristina Meneguello em 2012 e Silvana Rubino em 2014, é uma forma de reparação política do Estado – em relação à sociedade, mas, especialmente, às vítimas, aos sobreviventes e aos familiares de pessoas que foram assassinadas ou que estão desaparecidas até hoje. “É também uma forma de reparação coletiva, reconhecendo que aquele é um lugar onde o Estado cometeu crimes. Queremos que se torne um memorial em que possamos contar essas histórias”.

 

Depoimentos desmistificam senso comum sobre a ditadura

audiodescrição: fotografia preto e branca de placas de endereço das ruas totoia
DOI-Codi operava em bairro residencial e a vizinhança tinha ideia do que ocorria no local, aponta historiadora Deborah Neves (foto: Milton Bellintani)

Já foram coletados 20 testemunhos de sobreviventes, e a previsão é que mais 100 vítimas sejam ouvidas. Pesquisadores, incluindo estudantes da Unicamp, trabalham nas entrevistas, que têm como foco os depoimentos de mulheres, sub representadas na memória do período. Os relatos guiam as pesquisas indicando o funcionamento do local e já vêm contribuindo para desmistificar ideias em relação à ditadura. 

 

A primeira é a ideia de que ela operava em porões, às escondidas. “Não tem nada de porão no prédio da Rua Tutóia. A Vila Mariana é um bairro de classe média alta, a delegacia está à vista de todos, há muitas casas ao lado, então os vizinhos tinham o conhecimento de que algo muito errado ocorria ali dentro”, diz Neves.

 

O segundo é o de que ela só reagia a ameaças. “De um modo geral, as pessoas que entrevistamos não estavam relacionadas à luta armada, mas a uma luta política, de mobilização em universidades, sindicatos. Isso mostra que as pessoas eram perseguidas por suas ideias e não pelos seus atos e mostra que a ditadura foi uma ação persecutória, que buscou eliminar as pessoas que pensavam diferente e que não necessariamente agiram com armas”. 

audiodescrição: fotografia colorida da professora aline carvalho no laboratorio de arqueologia pública
Professora Aline Carvalho, no Laboratório de Arqueologia Pública da Unicamp, para onde o material encontrado será levado (foto: Alex Calixto)

Projeto irá trabalhar memória com a comunidade

O projeto de pesquisa no DOI-Codi é realizado de forma cooperativa. Estão envolvidas organizações de direitos humanos, como o Instituto Vladimir Herzog e o Núcleo Memória, e universidades públicas (Unicamp, Unifesp, USP, UFMG e UFSC). O Ministério Público do Estado de São Paulo também é protagonista na ideia de transformar as instalações em um memorial.

 

A professora Aline Carvalho, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Unicamp (NEPAM), é uma das pesquisadoras que integram a investigação. Ela atua no Laboratório de Arqueologia Pública (LAP/Unicamp), para onde todo material que for encontrado nas investigações será levado. Devidamente preservado, ele poderá ser utilizado para novas pesquisas, assim como para atividades educativas com a comunidade. 

 

A Universidade, que financiou o projeto via Faepex, terá a guarda dos artefatos até que o espaço do memorial se efetive. A pesquisa de arqueologia pública tem início pela arqueologia forense, coordenada pela professora Claudia Plens, e conta também com a participação do professor da UFMG e pesquisador da Unicamp Andres Zarankin.

audiodescrição: fotografia colorida da professora Aline Carvalho
“Por que trabalhar essa memória? Para falar também que a democracia é importante e que não podemos deixar acontecer de novo”, analisa professora Aline Carvalho (Foto: Alex Calixto)

Carvalho destaca que os achados irão trazer à tona não só a memória da repressão, mas também da resistência. “Existem muitas coisas que podem estar escondidas naquelas paredes, como pichações, objetos e bilhetes dos ex-presos que podem ter sido colocados intencionalmente nos encanamentos ou nos tijolos. Buscamos vestígios das pessoas que estiveram presas e que trabalharam ali. A ideia é encontrar os materiais tanto de quem reprimia como de quem tentava resistir”, diz ela.

 

O compartilhamento do conhecimento do que for descoberto é central no projeto, que toma a arqueologia pública como base. “A arqueologia pública mostra para as pessoas que nem sempre o mundo foi igual ao que vivemos. Quando falamos no DOI-Codi, estamos falando da memória relativa à ditadura brasileira, um regime opressivo em que as pessoas não podiam falar o que pensavam e em que os direitos da cidadania estavam suspensos. Por que trabalhar essa memória? Para falar também que a democracia é importante e que não podemos deixar acontecer de novo”, aponta a professora.

 

Carvalho convida aqueles que queiram contribuir com o projeto, seja com depoimentos ou atuando nas investigações, a entrar em contato com o LAP/Unicamp por e-mail: lapunicamp@gmail.com

 

Texto publicado originalmente no JORNAL DA UNICAMP: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2022/08/26/escavacoes-e-analise-forense-buscam-vestigios-da-repressao-e-da-resistencia

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